sexta-feira, 22 de outubro de 2010

da janela do meu quarto

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Foi no inverno passado!
Aos dias amenos e curtos sucediam-se as noites frias e longas. A monotonia era muita, talvez demasiada, se bem que, por razões de cronologia, eu já esteja na fase da vida mais voltada para a contemplação e apreciação das rotinas vagarosas e serenas.
O tempo estava todavia a mudar. Paulatinamente.
Os chuvosos e escuros dias tinham começado a "abrir", e o sol, algo incerto, já transferia o imaginário para outros dias, os do calor, da luz, e das "dianteiras" flores primaveris.
A vida renascia na serra, mas ainda havia neve lá no "alto."
Pela aldeia, as movimentações pouco se faziam notar, tudo decorria pacata e vagarosamente.
De olhar distraído, à janela do meu quarto, dei por mim alcançando o horizonte.
A monotonia do silêncio só fortuita e furtivamente se quebrava. Ah, havia o canto dos pássaros, que saltando de ramo em ramo bailavam com as folhas da laranjeira. E o gato malhado, que lá ao fundo do quintal, secreto e sorrateiro por entre as ervas daninhas, acometia sobre os pardais mais distraídos. Até na caça aos ratos dos celeiros e anexos é um perito, raramente falha a refeição. É ágil e rápido, forte mas meigo. Nos seus tons branco e preto é um bonito felino. Sempre preferi os cães aos gatos mas, gosto deste bichano. Não gosto é dos pardais, porque não cantam, e porque fazem os ninhos nos telhados e beirais entupindo as canalizações da casa.
Já não lembro o epílogo do seu, dele gato, desempenho nesse dia. Alguém que conduzia o rebanho para o repasto diária em terrenos mais além, passou incendiando a monotonia. Era uma voz determinada, feminina e jovem, afoitando os animais para um passo mais rápido. O tilintar continuado dos chocalhos, qual melodia pastoril, também denunciava a pressa que teria(m) em "fazer o caminho". Não lhe distingui a figura por estarmos em planos desnivelados e ter a linha de visão estorvada. Assim acontece nas povoações se, e quando, em "socalcos". Também não consegui reconhecer-lhe a voz. Desta sorte, não pude saber de quem se tratava.
O relógio na torre da igreja batia, com três dissemelhantes notas e com aquele típico som côncavo dos dias húmidos e cinzentos, a meia daquela hora qualquer. Os sons do grupo iam ficando cada vez mais fracos, até que desapareceram. Eu regressei ao cantar da passarada, e ao suave e monótono balancear que ao vento cumpriam os ramos guarnecidos da laranjeira. O gato malhado já por ali não andava.
À janela do meu quarto, assim fiquei durante a "eternidade" que foi aquele tempo seguinte.
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Embora conhecida, a visão dali abraçada proporciona sempre uma satisfação renovada, e eu estava por inteiro mergulhado na paisagem, ora acinzentada do velho casario, ora verde dos campos. E estava, sereno, silencioso, sossegado,...
Um mimo para a vista, a que se juntava agora, cada vez com mais nitidez e vigor, um apaixonado e nostálgico "cantar de trabalho", vindo de lá de longe. Da cantiga, porque longínqua demais não deslindei a lírica, com frequência delatora de um amor ausente, mas deliciei-me com a melodia. Quase ouso abonar, porque estas "coisas" se adivinham, ser cantada pela jovem que antes passara com o rebanho.
Cantaria para lembrar..., cantaria para esquecer..., cantaria para se divertir..., cantaria para agradar...
O dia seguiu abrindo, e o meu ânimo abriu também graciosamente agradado.
Era o fim do Inverno, .... o início da Primavera.
Não sabia, nem carecia, como e a quem retribuir aquele musicado naco de tarde.
A cantiga era bonita. Quem a cantava, não sei!
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